Aqui não citarei a história de uma pessoa só, mas sim de um sentimento por mim vivido no início da minha atuação profissional.

Voltamos agora para o início do ano de 2018.

Não sei se você se lembra onde estava neste período, os conflitos que vivia ou desejos que possuía.

Mas eu me recordo bem, pois era meu primeiro ano como, enfim, médica.

Estava trabalhando em um pronto socorro e a cada dia que passava uma sensação desagradável se tornava mais e mais intensa.

”Não há de ser nada, deixa para lá’’ eu me repetia.  

Segui trabalhando.

Todos os dias me deparava com pessoas em estado de saúde grave.

Até que:

Era uma noite fria, eu estava atendendo os casos que chegavam na emergência quando recebi uma ligação do hospital (do setor onde pacientes estavam internados).

Me chamaram para ir com urgência para ver uma paciente, a qual estava com as batidas do coração fracas, quase parando me disseram.

Eu fui correndo pelos corredores do hospital, e a sensação a qual citei, incômoda, voltou.

Voltou com maior potência.

Era inevitável.

A sensação de que eu corria, mas de que não estava sozinha.

Corria ao lado Dela, ao lado da Morte.

[Aqui, para deixar claro, não entro em crenças religiosas ou a falta delas. Apenas descrevo o que foi real para mim naquele momento]

Era o sentimento de que eu estava indo em direção a uma pessoa, na tentativa de reverter seu destino talvez já estabelecido.

Parecia uma luta injusta, não acha?

As vezes eu vencia, mas apenas quando Ela me permitia.

Naquele dia eu perdi.

A paciente que fui avaliar acabou falecendo, mesmo após as tentativas de reanimação.

Era difícil lidar com a companhia quase constante de Sua presença (a sensação da Morte ao meu lado diariamente).

Sentimento de impotência.  

Até que um dia isso mudou.

Não a existência dela é claro, mas a forma como a percebi.

Lembrei de quando eu era aluna na faculdade de medicina e presenciei a morte de um paciente.

Uma médica, hoje cardiologista, deu a notícia do óbito aos familiares que aguardavam por informações.

Após conversar com todos eles, num diálogo calmo e tranquilo ela me surpreendeu dizendo (no momento em que estávamos apenas eu e ela) ’’sinto muita sorte em poder fazer isso’’.

Confesso a vocês: não compreendi aquela frase, ao menos não naquele momento.

Ela logo percebeu minha expressão de confusão (afinal quem gosta de dar más notícias?) e complementou na sequência.

Disse que na medicina lidamos com os momentos de maior fragilidade da vida de uma pessoa, e isso incluiria inevitavelmente lidar com o fim dela também. E sendo este um momento de tanta dor e de tanto sofrimento para quem fica, que sorte a nossa ter o privilégio de poder escolher nossas palavras e tornar a notícia do fim desse ciclo a mais leve e acolhedora possível.

[Talvez não um fim de fato, a depender do que você acredita]

E foi apenas naquele ano, em 2018, que verdadeiramente entendi aquela sabedoria que antes eu havia escutado.

A Morte sempre irá ‘’aparecer”, e claro que não apenas em hospitais.

Eu poderia tentar muitas vezes prorrogar sua vinda, porém quando isso não fosse possível, ou (tratando-se de alguns graus de cuidados paliativos por exemplo) esta não representasse a melhor escolha para a pessoa a minha frente.

Não havia necessidade de conflito interno.

A sensação desagradável que durante muito tempo esteve comigo na verdade não era por me sentir lado a lado da morte.

Entendi que se tratava da minha dificuldade em aceitar a existência Dela enquanto eu estava por perto.

Aprendi a lutar pela vida, mas concomitante a isso aprendi a aceitar o ciclo dela.

Uma aceitação ainda cheia de defeitos e inseguranças, é verdade.

Mas com o respeito do início ao término.

E que sorte, de fato (agora enfim vendo como benção) poder estar ao lado Dela, sendo para ser atendida em minha solicitação de que volte em outro momento, ou pela oportunidade  que me dá em acalentar – da melhor forma que minha natureza humana é capaz – aqueles que ficam.